Desde os anos 50, quando o mundo soube das três letras que representavam a agência de inteligência da União Soviética, os espiões KGB – com os seus estilos de vida (reais ou imaginários) de plantação de insectos e cúmplices sensuais – têm fornecido material interminável para romances, filmes e banda desenhada emocionantes. O fascínio continua mesmo agora: Em 2011, a rede de televisão americana FX anunciou o piloto de uma nova série sobre espiões da KGB a viver em Washington, D.C., nos anos 80.
Na última edição da Foreign Policy, o oficial aposentado da CIA Milton Bearden lembra-se do seu homólogo soviético Leonid Shebarshin, que morreu num aparente suicídio em Março de 2012. O antigo chefe da divisão de inteligência externa do KGB, que serviu como presidente do KGB um dia depois de o seu chefe ter tentado um golpe em 1991, permaneceu leal à agência durante toda a sua vida e passou os seus dias pós-KGB em Moscovo.
No entanto, isso não pode ser dito de todos os espiões do KGB. Ao longo dos anos, as vidas de vários espiões soviéticos vieram à luz à medida que desertaram da agência e apareceram na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos, nalguns casos com carregamentos de notas para partilhar.
Eis um olhar sobre alguns dos antigos espiões mais conhecidos da KGB e como era a vida para eles durante e após as suas passagens por um dos serviços de inteligência mais formidáveis do mundo.
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VLADIMIR PUTIN
Presidente russo Vladimir Putin foi um agente do KGB durante 15 anos antes de entrar para a política e assumir o mais alto cargo do país.
Depois de estudar Direito na Universidade Estatal de Leningrado, Putin juntou-se ao KGB e espiou expatriados em São Petersburgo. No início dos anos 80, mudou-se para a divisão de inteligência estrangeira do KGB na Alemanha Oriental, onde a sua função era identificar alemães orientais – professores, jornalistas, profissionais qualificados – que tinham razões plausíveis para viajar para a Europa Ocidental e os Estados Unidos e enviá-los para roubar inteligência e tecnologia dos países ocidentais.
Biografias de Putin sugerem que a sua carreira no KGB foi relativamente medíocre: Mesmo após 15 anos de serviço, Putin ascendeu apenas ao posto de tenente-coronel e nunca se destacou. Num comentário raro a um jornalista sobre este período da sua vida, Putin disse que não queria posições de nível superior no KGB porque não queria mudar os seus pais idosos e dois filhos pequenos para Moscovo.
Putin regressou à Rússia no final dos anos 80 e trabalhou como assistente universitário durante um ano, o que foi realmente uma capa para o trabalho clandestino com o KGB. Os seus dias como agente oficial do KGB chegaram ao fim quando se tornou conselheiro do presidente da câmara de São Petersburgo – outro período da sua carreira considerado pouco brilhante.
Em 1998, Putin tornou-se subitamente e inexplicavelmente o director do FSB, o sucessor doméstico do KGB, e depois o chefe do Conselho de Segurança russo. No ano seguinte, Boris Yeltsin escolheu Putin para se tornar o próximo primeiro-ministro russo. Conhece a história a partir daqui: A antiga flor de parede do KGB é agora o homem mais poderoso da Rússia.
Os críticos dizem que, tanto como primeiro-ministro como presidente, Putin tem confiado nas tácticas do KGB para manter um controlo apertado sobre a oposição (ainda este mês, a polícia russa deteve repetidamente, espancou e interrogou activistas). Como um escritor russo disse ao Washington Post em 2000, Putin é um tipo padrão do KGB. “Se a neve estiver a cair, eles dir-vos-ão calmamente, o sol está a brilhar”, explicou o escritor.
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ALEXANDER LITVINENKO
Litvinenko fez manchetes para aquilo a que alguns chamam o corajoso assobio – e outros, a bravata imprudente – que lhe pode ter valido uma morte feia e inoportuna.
Litvinenko juntou-se ao KGB em 1988 e trabalhou como espião de contra-espionagem até à dissolução da União Soviética. Juntou-se então à divisão mais secreta do FSB, combatendo o terrorismo e o crime organizado na Chechénia. Mas as coisas começaram a desmoronar-se em 1998 depois de Litvinenko ter feito uma declaração pública acusando um funcionário do FSB de o ter ordenado a assassinar Boris Berezovsky, um dos oligarcas mais poderosos da Rússia.
Não demorou muito até Litvinenko se encontrar numa prisão do FSB por “exceder a sua autoridade no trabalho”. Após duas rondas de acusações e absolvições, fugiu para Londres para se esquivar a um terceiro caso criminal, recebendo mais tarde uma sentença por contumácia.
De Londres, Litvinenko publicou dois livros – Blowing Up Russia: The Secret Plot to Bring Back KGB Terror e Lubyanka Criminal Group – ambos culpam o FSB por crimes em curso contra o público russo e, no caso do segundo livro, por treinar militantes da Al Qaeda e desempenhar um papel nos ataques de 11 de Setembro.
Em Novembro de 2006, aos 43 anos de idade, Litvinenko morreu de “uma doença misteriosa”. Investigações sobre a sua morte revelaram que ele foi envenenado por um isótopo radioactivo, o que foi irónico considerando que Litvinenko tinha ficado registado no New York Times em 2004 para alegar que o FSB estava por detrás do envenenamento do candidato presidencial ucraniano Viktor Yushchenko.
O cadáver radioactivo recordou ao mundo que as tácticas do KGB poderiam ter sobrevivido à agência.
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BORIS KARPICHKOV
Karpichkov, outro espião do KGB que se encontrou em desacordo com o Kremlin, acabou como agente duplo e ainda vive como um em Londres, onde mantém um perfil baixo e está sempre a olhar por cima do ombro, apesar de se ter reformado há muito tempo.
O nascido na Letónia Karpichkov foi abordado pela KGB em 1984 enquanto trabalhava como engenheiro mecânico numa fábrica de peças aeroespaciais. A agência enviou-o para uma academia do KGB em Minsk, Bielorrússia, onde foi treinado na arte de matar, de acordo com uma entrevista que deu ao Guardião em Fevereiro de 2012. Karpichkov tornou-se major e trabalhou na Letónia na Segunda Direcção, uma divisão de contra-espionagem de elite do KGB.
Quando a União Soviética caiu, porém, Karpichkov viu-se numa República independente da Letónia que era antagónica ao Kremlin. Juntou-se rapidamente à agência de inteligência do país – enquanto ainda trabalhava para a Rússia. Como agente duplo, Karpichkov dirigiu operações de desinformação contra a CIA e, numa ocasião, invadiu a embaixada britânica em Riga para plantar um dispositivo de escuta.
Mas em 1995, Karpichkov estava a ficar desencantado com o FSB corrupto, que ele afirma não lhe estar a pagar. Depois de a agência de inteligência da Letónia ter descoberto que ele trabalhava para o FSB, regressou brevemente à Rússia antes de sair à socapa do país no final dos anos 90. Entrou na Grã-Bretanha usando um passaporte falso dos seus dias de KGB e nunca mais olhou para trás.
Hoje em dia, explica Luke Harding, do Guardian, Karpichkov “escreve, mantém-se em contacto com os acontecimentos na Rússia, e desaparece de vez em quando em viagens misteriosas cujo propósito ele se recusa a explicar”. Por vezes, Karpichov diz encontrar aparelhos de escuta e carros com as mesmas matrículas diplomáticas russas a aparecerem à porta do seu apartamento, e até ameaças de morte. Ele preocupa-se com a segurança da sua esposa e filhos, apesar de agora serem adultos.
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OLEG LYALIN
Lyalin é famoso por uma deserção ao Serviço de Segurança Britânico, ou MI5, que levou à descoberta e deportação de 105 oficiais soviéticos que foram acusados de espionagem na Grã-Bretanha.
Pouco se sabe sobre a vida de Lyalin antes do seu aparecimento na Grã-Bretanha nos anos 60, fazendo-se passar por funcionário de uma delegação comercial soviética. Mas os agentes do MI5 começaram a recrutar Lyalin em 1971 quando souberam que ele estava a ter um caso com a sua secretária, Irina Teplyakova – uma revelação que poderia tê-lo aterrado em água quente com as autoridades soviéticas se revelada. Alguns meses mais tarde, Lyalin foi preso por conduzir embriagado. O polícia no local, nessa noite, recordou que quando colocou Lyalin no banco de trás do carro patrulha, o espimestre espalhou-se com os pés no ombro do oficial e gritou: “Não podes falar comigo, não podes bater-me, eu sou um oficial da KGB”.
Lyalin ofereceu-se rapidamente para divulgar informações sobre o KGB em troca de protecção para ele e Teplyakova. Ao fazê-lo, ele tornou-se o primeiro espião do KGB a desertar desde a Segunda Guerra Mundial (tanto quanto sabemos). A expulsão em massa de diplomatas soviéticos e funcionários do comércio que ele ajudou a desencadear foi, de acordo com o Guardian, “a maior acção tomada contra Moscovo por qualquer governo ocidental”.
Lyalin e Teplyakova casaram e mudaram as suas identidades, mas a relação não durou muito tempo. Em 1995, Lyalin morreu aos 57 anos de idade, após ter lutado contra uma longa doença. Ninguém parece saber o que era a doença ou onde Lyalin estava a viver quando morreu. De acordo com um obituário do New York Times, ele faleceu num “local não revelado no norte de Inglaterra”.
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VASILY MITROKHIN
Mitrokhin era um agente de carreira do KGB cujo projecto secreto – contrabandear documentos para fora dos arquivos do KGB – tornou-se o tema do livro A Espada e o Escudo de 1999, no qual colaborou com o historiador britânico Christopher Andrew.
Mitrokhin juntou-se ao KGB em 1948 e descreveu-se como um agente zeloso até ser transferido para os arquivos do KGB em 1956 – um período em que se tornou cada vez mais crítico do grupo de inteligência depois de ouvir o líder soviético Nikita Khrushchev denunciar Joseph Stalin num discurso secreto no congresso do Partido Comunista.
Durante 12 anos, Mitrokhin contrabandeou milhares de documentos dos arquivos, enfiando-os nos seus sapatos antes de sair todas as noites. Em casa, ele copiava cada um à mão. Escondeu os documentos em recipientes de leite e enterrou-os no seu jardim ou debaixo do soalho da sua casa, sem sequer dizer à sua mulher o que estava a fazer.
Em 1992, pouco depois do colapso da União Soviética e oito anos após a sua saída do KGB, o arquivista abordou funcionários da CIA na Letónia com relatos do arquivo que tinha acumulado e um pedido de desertar. Rejeitado categoricamente, Mitrokhin recorreu aos agentes do MI6, que o levaram para a Grã-Bretanha e enviaram agentes para a Rússia para desenterrar os documentos do KGB da casa de Mitrokhin (foram transportados para o Reino Unido em seis malas). Os britânicos deram a Mitrokhin e à sua esposa protecção policial e um nome falso.
O FBI descreveu mais tarde a contribuição de Mitrokhin como “a inteligência mais completa e extensa alguma vez recebida de qualquer fonte”. Perguntado por que decidiu copiar todos os documentos, Mitrokhin explicou à BBC, “Queria mostrar os tremendos esforços desta máquina do mal, e queria demonstrar o que acontece quando os fundamentos da consciência são pisoteados e quando os princípios morais são esquecidos. Considerei isto como o meu dever como um patriota russo”. Em 2000, Mitrokhin morreu de pneumonia aos 81 anos de idade.
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ALDRICH AMES
Para americanos, Ames é talvez o espião mais infame do KGB, tendo trabalhado como toupeira na CIA durante nove anos até ser apanhado, julgado e condenado por traição.
Ames era o filho de um oficial da CIA que tinha trabalhado disfarçado na Birmânia nos anos 50. Foi o pai de Ames que o encorajou a treinar para o trabalho da CIA, e conseguiu que fosse contratado em 1962. Mas Ames estragou de tal forma as suas missões de espionagem-recrutamento que sucumbiu a bebedeiras e à depressão, alegando que estava desiludido com o que viu da política externa dos EUA.
Quando Ames foi promovido a chefe do ramo de contra-espionagem nas operações soviéticas em 1983, encontrou ficheiros sobre o pessoal da CIA que trabalhava na Rússia na ponta dos dedos. Entretanto, a amante de Ames estava a acumular dívidas intransponíveis, e um acordo de divórcio com a sua mulher deixou-o bem no vermelho. Ames admitiu mais tarde que precisava de cerca de 50.000 dólares – e lembrou-se de ouvir que o KGB pagou aos agentes da CIA essa quantia exacta para se tornar um espião do KGB.
Em 1985, Ames ofereceu os nomes de três agentes duplos a um contacto do KGB, pensando que o que ele estava a fazer não era assim tão traiçoeiro, uma vez que, tecnicamente, eram agentes do KGB. Recebeu os 50.000 dólares num saco de papel castanho, e semanas mais tarde informou o KGB sobre muitos outros espiões americanos na União Soviética, incluindo um dos seus melhores amigos, Sergey Fedorenko. Ao todo, Ames revelou as identidades de 25 agentes da CIA, 10 dos quais foram condenados à morte. Tornou-se o espião mais bem pago do mundo, ganhando cerca de 4 milhões de dólares por virar-se contra os seus colegas.
Ames foi finalmente preso em 1994 pelo FBI depois de ter escapado duas vezes ao FBI. Foi condenado a prisão perpétua ao abrigo da Lei da Espionagem (o mesmo estatuto que a administração Obama utilizou para processar funcionários do governo por fuga de informação classificada) e está agora preso numa prisão de segurança máxima na Pensilvânia.
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OLEG KALUGIN
Um professor americano da KGB, que se tornou num general-Putin-bashing, Kalugin decidiu juntar-se à KGB em 1951 depois de se ter licenciado na Universidade de Leningrado. Foi formado e enviado para os Estados Unidos com uma bolsa Fulbright para obter uma licenciatura em jornalismo na Universidade de Columbia, e mais tarde posou como jornalista em Nova Iorque enquanto espionava para os soviéticos. Logo se mudou para a embaixada soviética em Washington, D.C., e tornou-se o mais jovem general do KGB em 1974.
As coisas tomaram um rumo infeliz para a crescente estrela do KGB quando Vladimir Kryuchkov, o chefe do KGB que mais tarde iria instigar um golpe contra o líder soviético Mikhail Gorbachev, acusou Kalugin de recrutar alguém que se revelou ser um espião americano. Nessa altura, Kalugin tinha regressado à Rússia, onde lhe foi ordenado que “ferretasse” cidadãos soviéticos desleais, de acordo com uma entrevista que deu à Foreign Policy em 2007. Cada vez mais descontente, Kalugin começou a denunciar a corrupção do KGB até ser despedido da agência, em 1990.
No ano seguinte, Kalugin trabalhou para combater o golpe de Kryuchkov antes de se mudar para os Estados Unidos. Aceitou um cargo de professor na Universidade Católica da América, escreveu um livro baseado na sua experiência de espionagem para o KGB, e ajudou a desenvolver um jogo de computador em que o jogador é um agente da CIA encarregado de interromper uma conspiração para roubar uma ogiva nuclear e assassinar o presidente dos EUA.
Vladimir Putin – que, disse Kalugin à FP, era “demasiado pequeno para me denunciar” – denunciou Kalugin como traidor e julgou-o à revelia em 2002, o que resultou numa pena de prisão de 15 anos que ele nunca cumpriu. Agora Kalugin ensina no Center for Counterintelligence and Security Studies e serve como membro da direcção do International Spy Museum em Washington, D.C.
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